De 12 a 15 de junho, a cidade de Caçador sediou o 1º Congresso Nacional do Contestado, evento científico e cultural sobre a guerra que envolveu disputa territorial, desmatamento, expansão capitalista, morte e esquecimento – temas que emolduram uma das revoltas populares mais sangrentas do Brasil ocorrida no Oeste Catarinense de 1912 a 1916.
As nuances culturais, históricas, políticas e geográficas que marcaram essa guerra foram tema de 80 trabalhos científicos apresentados por pesquisadores de todo o país no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC) – Campus Caçador, organizador do evento em parceria com a Prefeitura da cidade e o Instituto Federal Catarinense (IFC) – Campus Videira. Além dos trabalhos apresentados, foram realizadas uma conferência e cinco mesas-redondas, todos os atos permeados por momentos culturais e místicas que remontam à simbologia e a tradições dos caboclos da região.
O Congresso é a coroação de uma série de atividades que vêm sendo desenvolvidas desde outubro de 2018 em Caçador. As ações fazem parte do projeto “Semana do Contestado: um olhar científico sobre a história de um povo”, que propõe a criação de uma agenda de reconhecimento e empoderamento acerca da história da região.
Além de pesquisadores e estudantes, o Congresso reuniu também diversas autoridades locais, especialmente na noite quarta-feira (12), quando foi realizada a solenidade de abertura oficial do evento. Na ocasião, o IFC foi representado pelo professor Wanderson Rigo, que destacou a importância do Congresso. “Esta terra é regada a sangue, suor e lágrimas. Que este evento sirva para que possamos dar voz a quem não teve”, destacou.
O professor agradeceu e parabenizou os idealizadores e o Núcleo de Estudos do Contestado (NEC) do Campus Videira, que atuou em parceria para a organização do Congresso. O Núcleo será o responsável por coordenar o próximo Congresso em 2020, que será sediado pelo Campus Videira.
Eduardo Pires, diretor do IFSC Campus Caçador, ressaltou a captação de recursos feita pelo Museu do Contestado por meio de projeto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O diretor parabenizou a equipe do Museu do Contestado, que, em parceria com o IFSC, conseguiu captar cem mil reais para a realização do evento. “A brutalidade da guerra impossibilitou que ela fosse contada de forma justa. Precisamos discutir como a guerra afetou e afeta as relações sociais, incentivando as publicações científicas sobre o tema e permitindo a melhoria de vida das pessoas”.
O 1º Congresso Nacional do Contestado teve a coordenação-geral do diretor de relações externas do IFSC Campus Caçador, servidor William Peres. Ele conta que a organização de um evento desta complexidade o deixou com ‘cabelos brancos’ aos 26 anos de idade, mas que está feliz e emocionado em poder colaborar para a realização do Congresso. William destacou que ninguém faz nada sozinho e elencou todos os apoiadores do evento, em especial dos servidores do Museu do Contestado. “Devemos conhecer o passado para entender o presente e prospectar o futuro. O Contestado é mais do que uma história, é um sentimento”, afirmou.
Conferência de Abertura – A conferência de abertura foi ministrada pelo doutor Donaldo Schuler, professor Emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), escritor, tradutor e conferencista, Schüler coleciona dezenas de premiações, entre elas um prêmio Jabuti (2004) pela tradução de Finnegans Wake.
Natural de Videira, Schüler é autor do romance “Império Caboclo”, que escreveu a partir de memórias de contatos com caboclos que frequentavam a bodega de seu pai e por meio de pesquisas em livros e conversas com conhecidos. Ele afirma que a Guerra do Contestado, apesar de ser um dos maiores conflitos civis brasileiros, maior que a Guerra de Canudos, ainda não tem seu lugar devido na história, por isso a importância da pesquisa acadêmica e a realização de congressos sobre o tema.
Segundo Donaldo Schüler, o Brasil ainda não superou o processo de exclusão que deu origem à Guerra do Contestado, o que se constata nos altos índices de pobreza e baixa escolarização. “A estrada de ferro que ligou o centro ao sul do País provocou o desmatamento e a desapropriação de pessoas que estavam morando há milênios na floresta. Eles ficaram sem alimentação, sem abrigo, sem emprego, sem a possibilidade de serem absorvidos pela nova sociedade que estava se formando”.
Segundo o professor, o grande número de pessoas analfabetas e com baixo grau de instrução representa a exclusão na atualidade, por isso a sociedade e, especialmente, o poder público, precisa atuar para que esta população não fique “à margem” do mercado de trabalho. “Incluir essas pessoas é muito difícil, pois não tiveram escolaridade suficiente para desempenhar as funções exigidas atualmente. Mesmo em Santa Catarina, um dos estados mais ricos, ainda há um alto índice de pobreza e de fome. Então, coisas que provocaram o conflito do Contestado continuam existindo”, ressalta. “Evoluímos, mas ainda estamos longe da meta que devemos atingir”.
O professor alerta que, o mais importante, porém, é abordar a questão humana, o combate à concentração de capital e à marginalização de grande parte da população. “Em um paralelo com o Contestado, o problema da sociedade atual não é policial, mas um problema social. Naquela época, não se deu atenção às necessidades das pessoas que foram afetadas por esse processo civilizatório que beneficiou uns e prejudicou outros, com as consequências que teve. Então, o erro está se repetindo: está se considerando um problema policial aquilo que é um problema social”.
A dor traduzida em cor – A professora do IFC e coordenadora do NEC, Márcia Schüler, também é artista plástica. Suas aquarelas foram expostas no hall de entrada do Congresso, no Parque das Araucárias. Também é de sua autoria o retrato de Maria Rosa, que foi transformado em identidade visual do evento.
Natural de Videira e prima de Donaldo Schüler, inspirou suas obras no livro “Império Caboclo”, que a estimulou a conhecer mais sobre a história da região e também a pintar. Assim, foi descobrindo histórias de muito sofrimento, que acabou traduzindo em cor, nas suas aquarelas. “A gente pisa em sangue caboclo e eu não tinha noção disso. Então, cada aquarela representa uma dor minha, uma dor colorida, agora”, conta.
Segundo Márcia, muito dessa história foi esquecida, não houve interesse em que se perpetuassem. Agora, as pesquisas estão resgatando essa história de dor do povo caboclo. “A ideia das aquarelas é trazer um colorido, uma nova esperança, para que possamos transcender e criar uma nova história, fazer novos dias, a partir de eventos como esse. Precisamos fazer aflorar essa nossa identidade, afinal, todos somos caboclos do Contestado. Quem tem na sua identidade a nacionalidade brasileira não é alemão, não é italiano, é caboclo, que o povo originário da região”.
Associações contribuem com a preservação histórica – Além da pesquisa científica, a própria comunidade regional preocupa-se com a preservação da história do Contestado. Um dos exemplos é a Associação Cultural Coração do Contestado, de Lebon Regis. O presidente, Carlos Nedir Veiga da Silva, explica que alguns amigos reuniram-se para preservar a história do município, onde encontram-se alguns dos maiores sítios históricos do conflito.
Assim, alguns locais estão recuperados e preservados, objetos históricos preservados e registro de depoimentos de pessoas da região. A maior conquista, segundo Neri, é a criação da logomarca “Coração do Contestado” e criação da Lei Estadual que nomeia Lebon Régis como o “Município Coração do Contestado”.
A Associação realiza ainda várias atividades culturais, como a Semana do Contestado, especialmente em parceria com escolas. Algumas delas vão se apresentar durante o Congresso do Contestado.
A intenção agora é criar um museu em Lebon Régis. Segundo Neri, ainda há muita coisa a se descobrir sobre o Contestado, o que precisa do envolvimento de todos. “A partir da Semana do Contestado que realizamos, o povo de Lebon Régis ganhou uma autoestima, não tem mais vergonha de se sentir caboclo e de se vestir como caboclo”.
Texto: Cecom/Videira/Juliana Peretti e Carla Algeri (IFSC)
Fotos: Cecom/Videira/Juliana Peretti